Como será a vida depois da pandemia?
Pergunta expõe contradições e desafia humanidade. Em busca de um sentido para tantas incertezas, reportagem traz reflexões de pensadores como Leandro Karnal, Miguel Nicolelis e Viviane Mosé.
Perguntar. Este é o verbo que melhor resume o que o mundo anda fazendo desde o início da proliferação do novo coronavírus. E as perguntas mais comuns que têm sido feitas neste período de crise generalizada reportam-se para o futuro. Como será o amanhã? Que tipo de vida nos espera quando tudo isso passar? Quando tudo isso vai passar? Em um, dois, três meses ou em um, dois, até três anos? Questões como essas rondam as mentes das pessoas em um quadro de insegurança extrema, em que não sabemos nem mesmo se estaremos saudáveis no fim do dia.
Na busca de um sentido para todas essas inquietações, a Folha de Pernambuco traz, neste fim de semana, reflexões de figuras importantes da intelectualidade do País. E a primeira questão que trazemos aqui – aquela sobre o amanhã – procura esclarecer como cada um pode pensar no próprio futuro mesmo diante de um cenário de tantas incertezas. “A civilização se compôs como uma bolha de ilusão que te promete o que não pode cumprir. Felicidade, estabilidade. Nunca tivemos isso, e agora estamos vivendo o mundo real”, avalia a filósofa, psicanalista e poeta Viviane Mosé (entrevista completa aqui). “A pandemia vai nos ensinar a lidar com a incerteza, a insegurança, o desconhecimento. A gente precisa se fortalecer, aprender a amadurecer em situações como essa. Estamos vivendo um processo de amadurecimento com muito sofrimento”.
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Esse processo de amadurecimento coletivo diante do desconhecido comportará, por um bom tempo, as mudanças trazidas na rotina da quarentena. Exemplos disso não faltam. Na Folha Mais de 9 e 10 de maio, o repórter Edi Souza, do caderno de Sabores, mostrou os impactos da pandemia no mercado gastronômico. Os restaurantes terão de disponibilizar menos mesas, que devem ficar mais afastadas umas das outras. No último dia 7, Bruno Vinícius, de Cultura, relatou o temor nas artes cênicas sobre as restrições de entrada nos teatros. O fechamento das salas de cinema, que no futuro também devem passar por um controle mais rígido para evitar lotações, ampliou o consumo de filmes por streaming, como recorda a matéria de Daniel Medeiros publicada na última edição de fim de semana. Fora as ‘lives’, que vieram para ficar.
Da educação, com a pulverização do ensino a distância, à modalidade urbana, com a necessidade de se investir no transporte por bicicleta para evitar aglomerações nos ônibus e metrôs, os vários aspectos do dia a dia tendem, com a ajuda da tecnologia, a se adaptar à redução do contato físico nas cidades. Mas isso não significa, nas palavras do historiador Leandro Karnal, que as demonstrações de afeto deixarão de existir. “Após a gripe espanhola, houve também resistência ao toque, e ele voltou forte quando o medo diminuiu. Acho que existe uma demanda contida de afetividade com o corpo que pode significar uma era de ouro de abraços e beijos assim que possível”, considera. “Tenho pouca convicção de que uma experiência de alguns meses pode alterar um comportamento cultural de forma definitiva”.
As tendências e a natureza
Fazer previsões nunca foi tarefa simples, e muito menos segura, mas o cenário complexo de hoje aponta para algumas tendências que, para Leandro Karnal, poderão se “aprofundar” no futuro. Entre elas, enxergar o Sistema Único de Saúde (SUS) como “fundamental” e entender o papel central do Estado no combate ao vírus. “A desigualdade social foi escancarada ao vivo e em cores durante a pandemia, e a solidariedade é um imperativo de sobrevivência da nossa nação. A ideia de Estado Mínimo é, por enquanto, uma hipótese inviável”, sugere. Outra inclinação que ele destaca diz respeito aos meios de comunicação. “A imprensa livre é uma alavanca contra a onda de fake news”, ressalta.
Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Karnal observa que o povo brasileiro é historicamente marcado por contextos de crise. “Eu tenho 57 anos. Inflação disparada, crescimento zero ou baixo e sem empregos: vivi isso como jovem estudante e trabalhando nos anos 1980. Houve um pequeno período entre as eras FHC e Lula de maior crescimento e estabilidade política. Aquilo foi exceção. A doença atacou uma economia já doente e com grande exclusão de empregos formais. Como sempre, a catástrofe econômica vai significar nada para alguns, menos viagens ao exterior para outros e fome para muitos. Nem na tragédia somos iguais”, afirma.
As reflexões sobre a vida após o coronavírus vão além da realidade brasileira. A crise global provocada pela doença também acentua as contradições presentes na relação do ser humano com a natureza. Professor catedrático da Universidade Duke, nos Estados Unidos, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis argumenta que todos esses desafios que põem em xeque o mundo que conhecemos refletem o processo que ele chama de “algoritmização” da vida humana. Na visão dele, nosso modo de organização social se desenvolveu com foco apenas no desenvolvimento tecnológico e na busca pelo lucro, distanciando-se do meio natural onde nasceu.
“Nós desenvolvemos uma tecnologia interessante, caímos de cabeça e não pensamos na fragilidade do modelo de integração global que estávamos criando. A culpa não é da China (onde o vírus começou a se espalhar), é da nossa espécie porque, ao invadir hábitats e dizimar vidas animais selvagens, entramos em contato com esse tipo de vírus que, em teoria, não chegaria a nós. A pandemia expôs nossa falta de preparo porque olhamos só na direção de como ganhar dinheiro e explorar a terra”, analisa.
Nicolelis coordena o Comitê Científico do Consórcio Nordeste, grupo de cientistas que assessora os governadores da região na adoção de estratégias contra a disseminação da Covid-19. Para o professor, a sociedade do pós-pandemia terá que se defrontar com questões que foram negligenciadas ao longo dos anos. “Como vamos melhorar a nossa saúde pública? Como vamos melhorar as formas de detecção de pandemias e de como elas começam? Como vamos poder usar a ciência para rapidamente fazer e criar vacinas? Nunca se falou tanto da ciência das vacinas como neste momento, mas até pouco tempo atrás houve um movimento crescente no mundo contra as vacinas”, recorda.
Na opinião de Viviane Mosé, o “movimento anti-vacina” é responsável pelas fake news que mais devem ser combatidas no que ela chama de “guerra da informação”. “A humanidade, nas redes sociais, está precisando construir teorias da conspiração para justificar o caos que vivemos. O modo predatório e arrogante como o ser humano se relacionou com a natureza justifica o que está acontecendo, não só na pandemia, mas no caos social, econômico e humano”, atesta.
Economia, política e direitos
Traçando como prioridades a segurança sanitária das populações e um modo de vida sustentável do ponto de vista socioeconômico e ambiental, é possível construir uma humanidade mais preparada para outras catástrofes globais e, assim, menos vulnerável aos impactos que elas possam gerar. Um dos grandes temores em relação ao “pós-pandemia” é a recessão econômica alimentada pela paralisação de diversos setores. Para a professora Marion Teodósio de Quadros, do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), isso demonstra a urgência em fortalecer as políticas de assistência social.
“Vamos ter uma economia ruim, com baixas taxas de emprego, não só aqui como no mundo todo. Tem que se focar a questão do suporte que pode ser dado às pessoas. Isso é fundamental. Se você tem um sistema de saúde e um serviço sanitário, de acesso a água e esgoto, que funcionem, consegue suplantar muitos problemas. Não adianta você privilegiar o mercado, tem que equilibrar com o serviço assistencial às populações mais pobres”, defende a pesquisadora, lembrando que a cobertura de saneamento básico, hoje precária para quase metade dos brasileiros, é essencial na prevenção de várias doenças.
Atuar na construção de um modelo de vida mais solidário e colaborativo pode ser a chave para o enfrentamento de crises futuras. Marion Teodósio espera que a comunidade científica seja mais ouvida pelos governos. “O coronavírus mostrou que a ciência tem uma validade, e essa validade atinge diretamente as pessoas”, observa. Para isso, o professor Miguel Nicolelis avalia que será necessário um maior envolvimento da população na luta por direitos. Da mesma forma que os pesquisadores devem exercer uma postura mais ativa em atrair investimentos públicos para os projetos que desenvolvem. “A crise do financiamento da pesquisa é brutal. Os cientistas vão aceitando porque sair protestando não é do estigma deles. E aí nós vemos os níveis de financiamento caírem”, comenta.
Se você chegou até aqui, viu que o debate é amplo em todas as frentes. Mas, seja qual for a área em que você atue, e que também foi alterada pelo coronavírus, o amor pelo mundo é um princípio que, segundo a pensadora Viviane Mosé, deve reger as relações e modificar o caminho tomado pela civilização. “Podemos mudar esse barco porque temos tecnologia para isso. Podemos, em pouco tempo, beijar a terra e a natureza, abraçar a vida. Você muda um conceito, e a gente pode voltar, tendo uma relação maravilhosa com o mundo, onde a gente também vai consumir produto. As empresas vão vender, isso não vai mudar gravemente, não. Mas os produtos devem devolver à terra amor, e não poluição”, sentencia.
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